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Nordestino que ama a terra onde pisa e a cidade onde nasceu. Eclético por formação e escolhas. Sempre buscando uma ideologia para viver, não para se apegar como verdade absoluta, apenas para viver... Um ser que valoriza a vida humana em sua plenitude.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

CAPITÃO NASCIMENTO BATE NO BONDE DO FOUCAULT - Parte II


Já empreguei duas vezes a expressão “Bonde do Foucault” para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: “Confesse que você é um reacionário.” “Bonde”, talvez vocês saibam, é como se chama, no Rio de Janeiro, a ação de bandidos quando decidem agir em conjunto para aterrorizar cidadãos. Quem já viu Tropa de Elite sabe: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.
No Brasil, os traficantes de ideias mortas são quase tão perigosos quanto os donos dos morros, como evidenciam nossos livros didáticos. Foucault sempre foi um incompreendido. Por que digo isso? Porque ele era ainda mais picareta do que seus críticos apontaram. No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças. Sim, isso poder ser Foucault, mas Foucault era pior do que isso. Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno. Lixo.
O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário. A sequência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direto e de tosas as transgressões da deliquência. Por isso o “Bonde do Foucault” da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite. Quem consome drogas ilícitas põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo. Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver? Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.
Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu. José Padilha e Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. Ocorre que era preciso uma reparação. A opinião de ambos – ligeira e mal pensada – favorável à descriminação das drogas ameaçou, num dado momento, sobrepor-se ao próprio filme. Observem: Tropa de Elite trata é da falência de um sistema de segurança em que, segundo o Nascimento, um policial “ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra.
A falha desse sistema independe do crime que ele é chamado a reprimir. Se as drogas forem liberadas e aquela falha permanecer, os maus policiais encontrarão outra forma de extorsão e associação com o crime. E esse me parece um aspecto importante do filme, que tem sido negligenciado. Um dos lemas da tropa é “no Bope tem guerreiros que acreditam no Brasil.” Esse patriotismo ingênuo e retórico tem fôlego curto: um dos soldados da equipe morre, e seu caixão está coberto com a bandeira brasileira. Solene e desafiador, Nascimento chega ao velório e joga sobre o “auriverde pendão da esperança” a assustadora bandeira do Bope: um crânio fincado por uma espada, atrás do que se cruzam duas pistolas. Outro dos refrões do grupo pergunta e responde: “Homem de preto qual é sua missão?/Entrar na favela e deixar corpo no chão / Homem de preto o que é que você faz?/ Eu faço coisas que assustam Satanás.” Resta evidente que o filme não propõe este Bope como modelo de polícia.
Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico “pegou geral” o Bonde do Foucault.
Por Reinaldo Azevedo (Revista VEJA, 17 de outubro de 2007)


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